
"Eu pescador que pesco por um instinto antigo e procuro não sei se o peixe se o desconhecido e lanço e recolho a linha e tantas vezes digo sem o saber o nome proibido.
Eu que de cana em punho escrevo o inesperado e leio na corrente o poema de Heraclito ou talvez o segredo irrevelado que nunca em nenhum livro será escrito.
Eu pescador que tantas vezes faço a mim mesmo a pergunta de Elsenor e quais águas que passam sei que passo sem saber a resposta. Eu pescador.
Ou pecador que junto ao mar me purifico lançando e recolhendo a linha e olhando alerta o infinito e o finito e tantas vezes fico como o último homem na praia deserta.
Eu pescador de cana e de caneta que busco o peixe o verso o número revelador e tantas vezes sou o último do planeta de pé a perguntar. Eu pescador.
Eu pecador que nunca me confesso senão pescando o que se vê e não se vê e mais que peixe quero aquele verso que me responda ao quando ao quem ao quê.
Eu pescador que trago em mim as tábuas da lua e das marés e o último rumor de um nome que alguém escreve sobre as águas e nunca se repete. Eu pescador."
(Manuel Alegre, in Senhora das Tempestades)